“A s tapeçarias do paraíso
Têm urdiduras invisíveis”

Emily Dickinson 

[ tapetes/flores de suportar o mundo ]

ausências são mãos que urdem oficiosas tramas

pedras são sólidas peles
que exasperam

(ásperas)

polimorfas figuras sobre a carne se inscrevem
à máquina

de tatuar vidas

a cada passo: tapetes/flores de suportar o mundo

convergem  rastros /provas materiais silenciosas/
para o esquecimento

(que o vento sopra) 

marcas se extinguem / ressurgem flores/esteio
de outros corpos

a mesma estampa

nós sobre nossos pés passamos /o tempo estanque

[ longo bordado ]


a tua ausência teceu em mim
um longo e áspero bordado

de silêncios e pedras

[ tatuagem catártica ]


era preciso
cobrir o corpo contra o frio
que não fosse pele
a vida
tecida pelas próprias mãos
 

[ do cultivo dos bichos ]


também era preciso cultivar os bichos
fiar a seda
fazer tinta
com que se tingem vestes
que não nos cobrem [ é tempo ainda
das asperezas do algodão 

[ panos azuis ]


fiar eternidades na roca dos instantes  

no tear dos silêncios
tecer palavras

urdir os versos, tramar as utopias
coser os panos

bordar estrelas : e pássaros : e peixes
luas e sóis : corais vermelhos

em infinitos azuis

[a pele feito escudo]


prender o instante em teares antigos
[alma de tecelã]
urdir, tramar, forjar a armadura
aos contornos da pele
[...teia

[exercício de esquecimento]


e se o esquecimento de repente
chegasse
e nos roubasse tudo
a ancestralidade do fogo
da pedra
e novamente nus, olhássemos estrelas
pela primeira vez
e a grande lua prestes a despencar
sobre nossas cabeças?

[do que podem as flores]


o fio
só se deixou moldar no tempo certo
antes
era preciso   
domar a força bruta
da madeira e do ferro
com que se fazem rocas
e as mãos — era preciso prepará-las
ao manuseio das fibras
[as flores podem ser ásperas também]

[da beleza que em tudo há]


compreender a beleza, quem pode?
vinda do pôr do sol
visto detrás
das cortinas
de um tempo esquecido
em relógios de cordas — e pássaros
que tecem ninhos ao amanhecer

[do que cantam os rios]


resgatar lembranças do baú das memórias
— onde estão as chaves?
o esquecimento as atirou ao rio 
que canta
palavras indecifráveis
[... e passa

[das espera do ser]


nas horas tardias, destecer enganos
e quando amanhecer:
    recomeçar
[ recomeçar:
tarefa humana
 [ trama

[do que nos abriga]


o calor que nos abriga
vem de dentro
pura lã:-  poesia
fora
na noite fria
uma fogueira queima
restos de poema

[tecido acaso]


ter as mãos amarradas
[ impossível cortar os fios
e compreender enfim : há uma palavra
no fim de tudo
ou um silêncio ígneo

[da forja dos deuses]

caído dos céus
grotesco Hefesto/ferreiro dos deuses
forjou Pandora
— por que insiste
a esperança
em se manter trancada no jarro/caixa
que ninguém mais possui?

[da música que toca]

desvincular feituras
convencionar levezas
ser tocado:

música

[do que já não se vê]


ao sabor do vento
fragmentos fantásticos
na fresta do sol

[do pássaro em movimento]


páginas escuras do livro velho
[imagens voláteis]
tecer o pássaro em movimento
e costurar palavras
nas mãos

[chuvas ao longe]

costurar sonhos
fechar os olhos e vislumbrar
a chuva

[...longe

[fina estampa]


cores díspares
colagens geométricas – e o pássaro
finalmente estampado

[objetos estranhos]


cavilhas, que mãos te moldaram
a que preço — e onde?

[ pequenos objetos estranhos
me perturbam ]

[o violino na parede]


permanece assim : alheio
antigo dedilhar

neste silêncio sem cordas

[o canto óbvio]


gaiolas onde pássaros cantam
o óbvio: urgências antigas
vertigens
sobressaltos / mergulhos
      e  as quedas livres

[cortinas ao vento]

confiar na alegria – fiar
em janelas que não

se fecham

(memória e cicatriz)

sopradas
por um vento qualquer

vindo do sul

[o ensaio das sombras]

vaga lembrança
do tempo em que a noite era mais
que o esquecimento
            ensaio
para o definitivo e último
            sono
sinfonia improvisada
ato que não se sabia quando
final

[vangoghiar]


no jardim sem flores
lagartear
e em tons de amarelos delírios
sonhar
       campos de girassóis

[matéria volátil]

no momento que passa, um presente 
de valor inestimável

pacote embrulhado em papel fino
cordão dourado

laço de fita que se desfaz
            ao ser tocado

[a flor do campo]


rasgar a pele dos silêncios em tintas outras
que não palavras
cores e espantos [ mãos calejadas
de antigas urdideiras
fiar a flor colhida ainda há pouco
                                    no campo do sentir
áspero fio que faz sangrar a carne e tinge
a roupa de carmim.                           
[... e canta

[dos sons da cidade]


um rasgo de silêncio no som tecido à estopa 
da cidade
e o sol, não mais apenas uma pedra
arremessada
contra velhas paredes que parecem chorar
Granadas de Espanhas são
gelosias
uma canção em braile [são ruídos
é tarde
só nessa hora os gatos são todos pardos
parcos pedaços de nada 
farta fatia de lua
e o zinco do telhado trinca [em incontáveis
cacos desiguais

[dos panos rotos]


e o pano da história
a tantas mãos tecido -- 
não aceita remendos

[sáuria]

o seu amado pensa que dorme
ele não sabe
que travestida
da sua veste fria
de lagarta
apenas se aquece
na rocha quente do seu corpo

[dos infinitos pontos]


linha: tece bordado fino
sutura
ferida aberta
prumo
na mão do pedreiro
risco: na folha de papel

trilho: onde corre o trem
destino
na palma da mão
pauta
onde se escreve música
rumo: no mapa do céu

[cartografia do verso-veia]


o escriba se lança como num precipício
homem de fibra
são tantas tintas que as mãos vivem sujas
e os olhos ardem terebintinas
penas e mata-borrões
escrevedor antigo : vincos na pele : face
grafada em letras : facas e gumes
horizontais
sorvo da tua boca-palavra : palato : fala
que me alimenta : embora arranhe
línguas-gargantas
no meu silêncio te aguardo carta de amor
cartografia do verso-veia : via
                                                  coração

[qualquer ruído]


uma canção antiga na língua da tarde
sem alarde
invade
vidraças
dissoluta atravessa cortinas
dissolve véus
vestidos
vestígios do dia : quer tocar : na pele
nua
que se insinua
ao ouvir a canção : epifania : estrelas
em meio aos escombros
lua cheia
qualquer ruído será música

[do intraduzível]



bem agora, que eu tinha tanto a dizer
me falta a voz
[tenho pétalas entaladas na garganta]
macias, seriam as palavras
vermelhas
abre a janela e olha
meus canteiros
ou o velho vaso de flor sobre a mesa
e tenta
me traduzir

[panos rasgados]


que o sangue escoe
quente viscoso fosco no humano fosso

[indecifráveis delírios]

que fragmente a bomba e fira
olhos e bocas

e que se rasguem bandeiras — inúteis
tecidos / fronteiras

tudo parece arder — então por que
poetas só ousam tocar

nos visgos dos corpos do fogo das suas
próprias peles

[devassa inocência]

e dormem — imersos em seus silêncios

[a cota do dia]


era manhã bem cedo e se julgava pássaro

quando caiu a tarde
se viu pedra

(e sua cota era apenas um dia)

vida de pedra
deveria ter vivido

não viveu
sonhando asas

pássaros — teriam pousado e feito ninho

[um rio de fogo]


cai sobre nós um manto
tecido em escrúpulos e náuseas
há combustível no ar
e uma faísca basta
um rio de fogo se pressente
[ninguém dirá que falamos
da morte
alguém até dirá que nos ouviu
dizer : da vida

[estrelas metafóricas]


bordar estrelas metafóricas
no céu
das palavras escritas
outras extintas
e as não ditas:
desfigurado espaço-tempo
onde [ ...nenhuma luz

[ Versais ]


laquear a madeira velha das gelosias
onde a moça se põe
ao entardecer

(ouço folhas de flandres
no tecer das horas
metálicas)

versar sobre o pôr do sol de uma vida

Versais

a escrita é mesmo desigual e o ser
é único

e a palavra

reata o ser à alma
ainda que

não sinta

um sustenido:um breviário:um verso

o capitão-do-mato me procura
a minha alma escura
na noite

se confunde

e só se encontra
no seu próprio quilombo

sem Zumbis

ouço tambores, cantos de guerra
uma dança

ao redor do fogo

um negreiro navio atravessa meu peito
e retorna

Áfricas

tenho saudades dos lugares
que não verei